0060480-81.2013.8.26.0100. bem de família – cancelamento pela via administrativa
Processo 0060480-81.2013.8.26.0100 – Dúvida
Interessado: MCMSM (Dra. Wilma Maria Calçada da Costa)
Bem de família – cancelamento – via judicial-administrativa.
- Processo 0060480-81.2013.8.26.0100, j. 24/01/2014, Dje 31/01/2014. Decisão do pedido declarando-se a incompetência do Juízo e determinando-se a redistribuição do feito à uma das Varas da Família e Sucessões da Capital. Dra. Tânia Mara Ahualli.
Sérgio Jacomino, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, atendendo à R. determinação exarada por V. Exa. às fls. 21 dos autos presta as seguintes informações.
Aspectos preliminares
1. A requerente postula a suscitação de dúvida nos termos do art. 198 da Lei de Registros Públicos (L. 6.015, de 1973 – LRP). Assim foi autuado pelo Ofício Judicial. Prenotei o título, que obteve o número de ordem 270.673, remanescendo hígida a prenotação até solução final deste processo.
1.2. Salvo melhor juízo, os atos perseguidos – cancelamento de registro de bem de família e de cláusulas restritivas – aperfeiçoam-se por meio de atos de mera averbação. Nesse caso, descabe a suscitação de dúvida, consoante decisões iterativas do Eg. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo (cfr. → AC 000.066.6/2-00, São Paulo, dec. de 15.8.2003, des. Luiz Elias Tâmbara e → AC 0051657-71.2012.8.26.0224, Guarulhos, dec. 27.5.2013, Dje 4.6.2013, des. José Renato Nalini, com citação de inúmeros precedentes).
Bem de família legal extravagante
2. O bem de família, que ora se busca cancelar, foi instituído por ocasião do registro da escritura pública lavrada nas Notas do 17º Tabelião de Notas da Capital (livro 2.036, fls. 208). O imóvel, titulado em nome da “Prefeitura do Município de São Paulo”, objeto da Matrícula 46.336, foi alienado a LS e sua mulher FMS. Ato contínuo, tal escritura foi registrada verbo ad verbum no Livro 3 – Registro Auxiliar (R. 3.646), com averbações subsequentes de inalienabilidade e impenhorabilidade (av. 3/M.46.336 e av. 1/L3/3.646).
2.2. Neste processo, a requerente pleiteia o cancelamento da afetação ao regime do bem de família, bem como das cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade.
2.3. A inscrição deste extravagante regime de bem de família decorreu de texto legal. O fundamento para a realização do negócio jurídico repousou na Lei Municipal 3.737, de 3 de janeiro de 1949, alterada pela Lei 5.691, de 8 de fevereiro de 1960. O art. 2º desta última rezava que “as casas obtidas nos termos desta Lei, serão consideradas bens de família, de acordo com o que dispõe a Lei Federal nº 2.514, de 25 de junho de 1955”. Já a Lei Federal 2.514, de 1955, somente alterou topicamente o vetusto → Decreto-lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, que trata do bem de família convencional.
2.4. Fato digno de nota é que o mesmo → Decreto 3.200, de 1941, previu a concessão de mútuo para o casamento por institutos e caixas de previdência, bem como pela Caixa Econômica Federal. No caso de aquisição de bem imóvel, previa o dito Decreto a “transcrição do título de transferência da propriedade, em nome do mutuário, com a averbação de bem de família, e com as cláusulas de inalienabilidade e de impenhorabilidade”. Aqui entram, aparentemente, e de modo inadequado, as ditas cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade que foram objeto de averbações, como já referido.
2.5. Ainda que admitamos que as disposições legais concernentes à inalienabilidade e à impenhorabilidade do bem de família, tomadas de empréstimo ao → Dec. 3.200, de 1941 no tocante ao mútuo matrimonial, não se aplicariam tout court no contexto da Lei Municipal 3.737, de 1949 – que previu unicamente a instituição do bem de família de caráter legal –, forçoso é reconhecer que as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade são de qualquer modo conaturais ao instituto do bem de família, representando, neste caso, tal averbação, superfetação. Por todos: AZEVED0, Álvaro Vilaça. (Bem de família. 4ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 116 et seq. n. 28).
Desafetação do bem de família. Cancelamento do registro pela via judicial
3. A doutrina sempre se inclinou à via judicial, ouvido o Ministério Público, como o meio legal para o cancelamento do bem de família. Assim, Ademar Fioranelli (Usufruto e bem de família. São Paulo: Quinta Editorial, 2013, p. 218), para quem a via judicial é incontornável. O mesmo autor já anteriormente lecionava:
XI. CANCELAMENTO OU REVOGAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA
A eliminação dependerá sempre de ordenamento judicial. No procedimento será examinado pelo Juiz julgador se o prédio deixou de ser domicílio de família; se há ou não outros filhos menores ou outro motivo relevante plenamente comprovado. São provas que não poderão ser analisadas pelo Oficial onde inscrita a instituição, por refugir à sua competência.
É o que estabelece o art. 21 do mesmo Decreto-Lei 3.200/41, citado, quando afirma:
‘A cláusula do bem de família somente será eliminada, por mandado do Juiz e a requerimento do instituidor, ou nos casos do art. 20, de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado.’
Deverá o Oficial exigir, portanto, segundo o que também prescreve nosso Regulamento de Registros Públicos (art. 250, I), o competente mandado judicial, do qual deverá constar necessariamente o trânsito em julgado da sentença (art. 259 da lei).” (FIORANELLI, Ademar. Direito Registral Imobiliário, IRIB/safE, Porto Alegre, 2001, p. 32-33).
No mesmo sentido a doutrina de Elvino Silva Filho, para quem o cancelamento do registro de bem de família deveria ser dar pelo art. 250, I, da Lei de Registros Públicos – portanto pela via judicial. “Esse procedimento” – dirá o saudoso colega – “deflui do prescrito no art. 21 do Decreto-Lei 3.200/41, que está assim redigido: ‘A cláusula de bem de família somente será eliminada, por mandado do juiz, e a requerimento do instituidor, ou, nos casos do art. 20, de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado. Sempre que possível, o juiz determinará que a cláusula recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio’ (§ 1°). Trata-se, como se vê, de sub-rogação, em virtude de determinação judicial. A ordem judicial, o mandado, portanto, é de rigor para que o registro possa ser cancelado, à vista do advérbio “somente” usado pelo legislador, o qual é sinônimo de unicamente, exclusivamente, etc”. (SILVA FILHO, Elvino. Do cancelamento no Registro de Imóveis. RDI 27, jan./jun. 1991, p. 38, n. 10.1). No mesmo sentido: Ricardo Arcoverde Credie (Bem de família. São Paulo: Saraiva, 2ª ed. 2004, p. 64-5), para quem a desafetação e o cancelamento será “sempre dependente de expedição de mandado ou alvará judicial em procedimento de jurisdição voluntária, no qual se verifique o real interesse dos integrantes da família, sobremodo quando existirem menores”. No mesmo diapasão: RIZZARDO. Arnaldo. (Direito de família. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 862, n. 2.4, passim),
3.1. A jurisprudência majoritária indica a mesma senda judiciária: Processo 1VRPSP → 0076490-40.2012.8.26.0100, São Paulo, dec. de 6.5.2013, DJe 15.5.2013, Dr. Marcelo Martins Berthe; Processo 1VRPSP → 0004781-42.2012.8.26.0100, São Paulo, dec. 21.3.2012, DJe 13.4.2012, Dr. Carlos Henrique André Lisboa; Processo 1VRPSP → 0022023-48.2011.8.26.0100, São Paulo, dec. 1.7.2011, DJe 11.7.2011, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão; Processo 1VRPSP → 0035257-34.2010.8.26.0100, São Paulo, dec. 17.11.2010, DJe 6.12.2010, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão.
Competência da Vara da Família
4. Outro aspecto merece a nossa consideração. O tema da competência para a determinação da desconstituição do bem de família já foi ventilado no âmbito da Vara de Registros Públicos. Firmou-se o entendimento de que ao Juízo de registros públicos “está reservada competência para dirimir as questões pertinentes diretamente ao registro, inclusive ao registro do bem de família, mas escapa à sua competência a matéria de fundo, referente ao interesse na desconstituição da cláusula que instituiu o bem de família”. Segundo o prolator da R. sentença, Dr. Marcelo Martins Berthe, o tema encerra matéria de direito de família e a manutenção ou extinção desse vínculo “exigirá sempre exame de matéria concernente ao interesse familiar que permitirá ou obstará a pretensão de desconstituição da cláusula instituidora do bem de família”. Cita-se, recorrentemente, o art. 37 do Código Judiciário do estado de São Paulo como fundamento para definição da competência em razão da matéria. Conclui o eminente magistrado:
“Reserva-se para o Juízo de Registros Públicos, em suma, o exame da regularidade formal do registro, enquanto toca ao Juízo de Família a competência para o exame de matéria relacionada com a causa do registro, especialmente as questões voltadas para o interesse da família no vínculo decorrente do bem de família instituído. Assim já firmou entendimento da Egrégia Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, ao decidir Conflito de Competência, assentou o que segue: ‘Competência ação de desconstituição de cláusula instituidora de bem de família competência para conhecimento da Vara da Família, tendo em vista versar a ação a respeito da causa justificadora e não da regularidade formal do ato registrário atacado’. (Conflito de Competência 37.391-0/9). No mesmo sentido foi decidido o Conflito de Competência 34.201-0/1 da mesma Câmara. (Processo 1VRPSP → 0053581-04.2012.8.26.0100, São Paulo, dec. 22.10.2012, Dje 26/10/2012, Dr. Marcelo Martins Berthe). No mesmo sentido o Processo 1VRPSP → 0004781-42.2012.8.26.0100, São Paulo, dec. 21.3.2012, DJe 13.4.2012, Dr. Carlos Henrique André Lisboa, já citado.
Novo código Civil e o cancelamento extrajudicial
5. O fundamento legal para destinar o pleito de desconstituição e de desafetação do bem de família e de seu cancelamento no registro às vias judiciais sempre foi o citado art. 21 do → Decreto 3.200, de 1941: “A cláusula de bem de família somente será eliminada, por mandado do juiz, e a requerimento do instituidor, ou, nos casos do art. 20, de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado”. A dilação probatória, mesmo no caso do art. 20, sempre se daria na via judicial.
5.1. No Código Civil em vigor o art. 1.719 reza que “comprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo ou autorizar a sub-rogação dos bens que o constituem em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público”. Até aqui estamos ressoando o mesmo acorde. Contudo, o novo diploma civil inovou no tema da desafetação e do cancelamento do registro do bem de família e traz um dispositivo que merece ser transcrito. Trata-se do art. 1.722, cujo teor é o seguinte:
Art. 1.722. Extingue-se, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela.
Nesta hipótese, parece-me que a simples comprovação, perante a autoridade administrativa competente (registrador ou corregedor permanente) que os cônjuges são falecidos e que os filhos do casal são maiores e capazes (com base em certidão atualizada de óbito e de nascimento dos filhos), poder-se-ia proceder ao cancelamento do registro, nos termos do art. 250, III, da LRP, sem a dependência de um pleito na vara da família. Avulta, neste caso, o fato de que, provado o óbito dos instituidores e com a subsequente partilha (já registada) do bem a seus herdeiros legitimários, identificados no processo judicial de inventário, restaria inteiramente comprovado a ocorrência dos fatos extintivos do vínculo, suposto não seja, tal vínculo, perene.
5.2. Não faltará apoio para esta saída que certamente será menos onerosa para as partes. Gostaria de apresentar à superior consideração de Vossa Excelência precedente da Eg. Corregedoria-Geral da Justiça aprovado pelo des. Luiz Tâmbara. As partes, maiores e capazes, formalizaram seu desiderato de desconstituição do vínculo por meio de escritura pública. Acolhida a pretensão dos interessados na via judicial-administrativa, o Ministério Público recorreu. Peço vênia para citar parte do r. parecer:
“Com efeito, a separação dos cônjuges e a transferência, por ambos, das respectivas residências para imóveis distintos do clausulado, estando a mulher e os filhos habitando casa própria em outra localidade, inclusive, revelam a inutilidade social da persistência da natureza de bem de família daquele imóvel situado na capital.
No que respeita à tese do escopo dos ex-cônjuges só ser alcançável por via diversa, mais burocrática, a despeito do zelo do recorrente não se a tem por acertada. A informalização das relações jurídicas é marca da sociedade contemporânea e só deve ser abandonada quando há sério risco à segurança dessas mesmas relações. Esse perigo não ocorre na espécie, em que os envolvidos, maiores e capazes, manifestaram o desinteresse na manutenção do bem de família por escritura pública, em situação fática de separados que residem casas distintas, tudo a apontar para a razoabilidade da redução do rigor no formalismo para a desconstituição do bem de família.
Não se identifica como óbice à pretensão resistida via recursal o disposto nos artigos 1.721 e 1.722 do Código Civil vigente, haja vista ter havido, na espécie, pronunciamento judicial que não necessariamente haverá de ser obtido no âmbito jurisdicional contencioso. Caracterizada está, portanto, a hipótese do artigo 1719 do estatuto civil.
Ademais, esta Corregedoria Geral da Justiça já se posicionou quanto ao estatuto civil atual, ao exigir pronunciamento judicial, nem sempre comportar interpretação literal. Assentou-se, sim, que essa imposição serve, em certas hipóteses, apenas para as situações em que há controvérsia. Na mesma linha poder ser compreendido o referido artigo 1719”. (→ Processo CG 1095/2003, São Paulo, dec. de 16.12.2003, des. Luiz Tâmbara). O referido recurso originou-se do Processo 1VRPSP 000.03.020018-0, São Paulo, j. 24.3.2003, Dr. Venício Antonio de Paula Salles.
Submeto o pedido à superior apreciação de Vossa Excelência com o devido respeito e acatamento.
São Paulo, novembro de 2013.
SÉRGIO JACOMINO
Registrador.