583.00.2009.111690-9. Indisponibilidade de bens – Alienação fiduciária.
Processo 583.00.2002.223869-7
Interessado: A.F.da.S.
Ementa: Indisponibilidade de bens – Alienação fiduciária.
Patrimônio indisponível. Aquisição de imóvel com obtenção de financiamento e concomitante alienação fiduciária. Extensão da indisponibilidade.
Senhor Juiz-Corregedor.
Em atenção à determinação contida às fls. 157 dos autos, tenho a honra de prestar a Vossa Excelência as seguintes informações.
1. Tramitação do título e aspectos preliminares
Em 23 de janeiro de 2009, ingressaram no Registro quatro instrumentos particulares pelos quais A.F.DA.S e sua mulher adquiriam imóveis nesta circunscrição imobiliária.
Os títulos foram prenotados sob números 29.140, 29.141, 29.142 e 29.143, em data de 23 de janeiro deste ano, e o acesso ao Registro acabou sendo denegado pelas razões que se acham expostas nas notas devolutivas acostadas às folhas 153 a 156 dos autos.
As referidas prenotações foram canceladas por inação dos interessados, nos termos do art. 205 da Lei de Registros Públicos.
Os títulos foram prenotados, examinados, e postos em devolução para que os interessados pudessem superar os óbices opostos pelo Cartório ou, não o podendo ou querendo fazer, suscitar dúvida, nos termos do art. 198 da mesma Lei dos Registros Públicos.
Entretanto, de modo diverso, os interessados elegeram a via administrativa de “pedido de providências” para alcançar, desse modo, o registro dos contratos cujo acesso foi denegado.
Entretanto, eleita esta via, ocorrem circunstâncias que, por dever de ofício, devo relatar a Vossa Excelência já que, salvo melhor juízo, as providências rogadas pelos interessados não poderão ser plenamente satisfeitas pela não observância do devido procedimento legal. São elas:
a) Os títulos foram reapresentados em cópias reprográficas autenticadas (fls. 33 a 152). Os títulos (em sentido formal) admitidos a registro somente são aqueles indicados no art. 221 da Lei de Registros Públicos, em cujo rol não se encontram as cópias notarizadas de instrumentos particulares. (brevitatis causa: Ap. Civ. 893-6/6, Santo André, j. 7.10.2008, rel. des. RUY CAMILO).
b) Resignação parcial às exigências. Não se conformando os interessados com parte das exigências opostas pelo Registro, a dúvida (ou procedimento homólogo) fica prejudicada, por não se admitir, em sede de dúvida ou procedimentos que-tais, decisões de caráter condicional. (mesmo julgado citado acima e ainda Ap. Civ. 878-6/8, Tatuí, j. 8.7.2008, rel. des. RUY CAMILO).
c) Os títulos não foram prenotados. Além disso, os títulos originalmente apresentados ao Registro não foram reapresentados com todos os seus documentos apendiculares – tais como certidões negativas, guias de recolhimento de imposto etc., todos sujeitos à qualificação registral original ou pelo juízo competente, nos casos de devolução.
2. Motivos que fundamentaram a recusa de registro
O leitmotiv da postulação dos interessados é questionar o alcance emprestado por este Registrador à ordem de indisponibilidade patrimonial que foi objeto de registro neste Ofício Predial.
Peço a Vossa Excelência vênia para justificar a denegação do registro, apresentando os fundamentos jurídicos que a embasaram, arrostando as alegações do interessado naquilo que representam frontal contestação à posição do Registro.
2.a – Efeitos temporais da liminar
Os efeitos da R. decisão judicial prolatada na Ação Civil Pública 2002.61.00.027929-6, da 10ª Vara Cível Federal de São Paulo, repercutiram no Registro, com a inscrição feita no Livro de Registro de Indisponibilidade Bens. Registrada sob número 860, em 16 de janeiro de 2003 (cópia anexa) aquela decisão jurisdicional tornou os bens dos réus (entre os quais o requerente) indisponíveis.
Contudo, a respeitável sentença – e a sua consequente ordem judicial – definiram claramente o escopo de sua incidência: foram atingidos os bens adquiridos a partir de 16 de novembro de 1995 (fls. 8), vale dizer: a decisão alcança bens presentes e futuros, adquiridos a partir daquele marco inicial.
Afasta-se, assim, a interpretação esposada pelo interessado – para quem a R. liminar cingiu-se aos bens existentes na data da prolação da decisão (fls. 29 e 30, item 4).
Não é incomum que, registrada a ordem de indisponibilidade no livro próprio da Serventia, os sujeitos que sofram o gravame venham a adquirir bens imóveis posteriormente. Neste caso, os efeitos da ordem anterior se irradiam e colhem a nova aquisição, impondo ao bem o regime e efeitos da indisponibilidade registrada.
Não estamos diante de um fenômeno de ultratividade da prenotação originária da indisponibilidade, nem tampouco se exerce uma interpretação extensiva (e abusiva) do registro, como sugerem os interessados (fls. 30, item 3).
Estamos, simplesmente, diante do fenômeno de plena eficácia que decorre do próprio registro (art. 1º da Lei 6.015, de 1973). É o mecanismo do Registro em ação, gerando seus plenos efeitos, posto que se ache hígida e em vigor a inscrição, não cancelada total ou parcialmente (art. 252 c.c. art. 249 da LRP).
2.b – Títulos em sentido material
É possível compreender claramente as razões subjacentes à denegação de registro divisando-se os negócios que foram entabulados concorrentemente nos instrumentos particulares apresentados. Contratou-se a compra e venda de bens imóveis e, ato contínuo, celebrou-se alienação fiduciária em garantia em favor do Banco do Brasil S/A.
Estamos, pois, diante de dois negócios jurídicos – dois títulos, titulus em sentido material, representando a causa imediata do registro (modus).
Nada obsta que dois títulos, assim considerados em seu sentido material (art. 172; art. 176, § 1º, III, 3; art. 190; art. 254 etc. todos da Lei 6.015, de 1973) sejam instrumentalizados num mesmo título, aqui considerado em seu sentido formal (art. 221 da mesma lei). Tanto assim, que a doutrina considera perfeitamente possível a cindibilidade de títulos, quando isso seja possível. Note-se, de passagem, que no presente caso isso não é possível, já que o registro de aquisição não pode se aperfeiçoar sem o corresponde e concomitante registro da garantia.
Portanto, diante de dois títulos, que originarão dois registros – a da compra e venda e o da alienação fiduciária – é possível compreender que ocorre uma sucessão de atos interdependentes de modo que, conquanto se conceda possível o registro da aquisição, o registro da alienação fiduciária não poderia mesmo se aperfeiçoar.
A alienação fiduciária em garantia é espécie de negócio em que se utiliza a transmissão da propriedade para fins de garantia (CHALHUB. Melhim Namem. Negócio fiduciário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.249). Nas operações do crédito imobiliário, como os celebrados pelo interessado, o adquirente transmite a propriedade ao credor fiduciário, concretizando, assim, a garantia criada pela Lei 9.214, de 1997 (art. 22).
Somente pode alienar o direito quem dele seja o titular – nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet. Mas a alienação voluntária, como ato de disposição que é, encontra, no caso concreto, a limitação de uma ordem judicial que lhe retira um dos eixos fundamentais do direito de propriedade. Para efeitos de limitação da disponibilidade, tanto faz que o ato seja de alienação fiduciária ou de hipoteca, de alienação ou de oneração.
Além disso, acham-se em causa os interesses do credor, e não deixa de ser impressivo que os interessados tenham aportado apenas cópias reprográficas dos títulos, já que, advertido pelo Registro, o credor pode ter se acautelado de realizar uma operação que poderia, em tese, redundar em prejuízo em virtude da extensão e consequências que a indisponibilidade poderia acarretar.
2.c – A indisponibilidade implica inalienabilidade e impenhorabilidade
O instituto da indisponibilidade de bens é um dos menos estudado pelos especialistas em direito registral. Contudo, é possível aproveitar as conclusões fixadas em inúmeros acórdãos do Eg. Conselho Superior da Magistratura que representam, como se sabe, uma fonte autorizada de jurisprudência. Além disso, suas decisões ostentam o caráter de quase-normatividade, como advertia o des. BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ (apresentação à obra de NARCISO ORLANDI NETO, org. Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982, p. IX).
E a doutrina não discrepa. WALTER CENEVIVA, por exemplo, há muito vem sustentando que “a indisponibilidade é forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade” (Lei de Registros Públicos comentada. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 553, n. 671), no que vem secundado pela jurisprudência:
Indisponibilidade – decisão judicial. Ação civil pública. Valor venal – ausência.
Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente – Pretendido registro de escritura de venda-e-compra – indisponibilidade decorrente de decisão judicial – Ação civil pública – Registro inviável – Segundo óbice subsistente – Recurso desprovido. (Ap. Civ. 101-6/3, j. 17.12.2003, Sumaré, rel. des. LUIZ TÂMBARA).
Destaca-se do V. aresto:
“É pacífico o entendimento deste Conselho Superior no sentido de que a indisponibilidade, seja decorrente da aplicação de dispositivo de lei, seja decorrente de decisão judicial específica, implica na inviabilidade de serem, por meio de atos de registro, efetivadas transferências de direitos reais já existentes ou criadas quaisquer novas onerações”. (grifamos).
Na Ap. Civ. 29.886, o C. Conselho deixou consignado:
“A indisponibilidade é forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade (cf. Walter Ceneviva, in “Manual do Registro de Imóveis”, pág. 143), impedindo, a exemplo do que ocorre com os casos de bens de diretores e sócios de sociedade e empresas em regime de liquidação extrajudicial, acesso de todo e qualquer título de disposição ou de oneração, ainda que confeccionado em data anterior à liquidação propriamente dita. O dispositivo tem caráter amplo e genérico, e não compete ao registrador interpretá-lo restritivamente”. (Ap. Civ. 29.886-0/4, j. 16.2.1996, São Paulo (11º SRI), Relator des. MÁRCIO MARTINS BONILHA).
Parece lógico inferir que a indisponibilidade, representando forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade, uma vez registrada, impeça a alienação em garantia (alienação fiduciária) retirando dito bem do comércio jurídico, impedindo ainda que, de outra forma, o credor possa excutir o patrimônio em possível execução decorrente do próprio contrato.
Admitir-se o registro da aquisição, desarmando o credor de suas garantias, fere o sistema de segurança jurídica que o Registro representa e bem por essa razão, o registro foi denegado.
Estas são as informações que presto a Vossa Excelência – o que sempre faço com o devido respeito e acatamento – devolvendo a apreciação do caso concreto a esse R. Juízo.
SP., 13 de março de 2009
SÉRGIO JACOMINO
Oficial registrador