100.10.026150-6. Doação entre cônjuges – Regime da separação obrigatória de bens.
Processo 100.10.026150-6 – pedido de providências
Interessado: JBC – MLCC
Advogado: Dr. MARCO ANTONIO PEREZ ALVES.
Doação entre cônjuges. Regime da separação obrigatória de bens.
Doador e donatário casados sob o regime da separação obrigatória (legal) de bens. Subversão ao regime legal. Registro denegado
- Ap. Civ. 546.548.4-7 – rel. des. Caetano Lagrasta. V. acórdão citado na informação: Processo 100.10.026150-6 – doação entre cônjuges.
- Processo 0026150-63.2010.8.26.0100 (100.10.026150-6) – Pedido de Providências – Registro de Imóveis – Jose Benedito Cruz – – Maria Luiza da Conceição Cruz – 5º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo – Vistos. Tendo em vista o requerimento da parte que consta de fls. 40, homologo a desistência requerida e sem julgamento do mérito, julgo extinta a ação. Cientifiquese o Ministério Público. Após, nada mais sendo requerido, ao arquivo. PRI. São Paulo,22 de outubro de 2010. Gustavo Henrique Bretas Marzagão Juiz de Direito. 286 – ADV: MARCO ANTONIO PEREZ ALVES (OAB 128753/SP)
Sérgio Jacomino, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, atendendo ao R. despacho proferido às fls. 30 dos autos, vem prestar as seguintes informações a Vossa Excelência.
Questões preliminares
a) Dúvida registral
A primeira questão preliminar versa sobre a natureza do pedido. Embora a inicial veicule o pedido de obrigação de fazer, o feito foi distribuído como pedido de providências, com curso pela E. Primeira Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo.
No entanto, depreende-se do pedido, de maneira muito nítida, a não-resignação dos interessados com as exigências formuladas por este Registro a propósito da pretensão de registro da escritura pública de doação que se acha acostada às fls. 17-8 dos autos (doc. 8).
O conflito que se instaura a partir de uma pretensão resistida a registro stricto sensu se veicula por meio de processo de dúvida, nos termos do art. 198 da Lei 6.015, de 1973.
b) Título – cópia reprográfica
Além disso, o título foi reapresentado a Vossa Excelência em mera cópia reprográfica, sem que dele os interessados fizessem acompanhar os documentos apendiculares que são essenciais para a consecução do ato de registro.
A jurisprudência iterativa do C. Conselho Superior da Magistratura é pacífica. Brevitatis causa:
TÍTULO – CÓPIA REPROGRÁFICA. DÚVIDA – PREJUDICIALIDADE.
EMENTA: REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida – Escritura de Venda e Compra – Ausência de título original – Matéria prejudicial – Recurso não conhecido. Ap. Civ. 1.270-6/0, 30/3/2010, DOE: 1/6/2010, BRAGANÇA PAULISTA, Relator Des.: Munhoz Soares.[1]
Fundamento para a denegação de registro
A razão da denegação de registro baseou-se na consideração de que a doação entre cônjuges pode representar infringência ao dispositivo legal que obriga a adoção do regime da separação obrigatória de bens nos casos do art. 1.641, II, do novo diploma civil.
Pode ocorrer, no caso concreto, eventual subversão do regime legal, consoante reiterada jurisprudência administrativa-registral do C. Conselho Superior da Magistratura de nosso Estado.
A matéria não é nova e vem merecendo decisões que sufragam o entendimento esposado por este Cartório.
Todavia, é preciso reconhecer que recentes decisões – tanto da R. Primeira Vara de Registros Públicos, quanto do Superior Tribunal de Justiça – vêm mitigando o entendimento que ainda hoje se mantém uniforme no Conselho Superior da Magistratura do nosso Estado.
Tive ocasião de suscitar dúvida que foi julgada por Vossa Excelência improcedente. Trata-se do Processo 583.00.2007.104240-6, que guarda alguns pontos de contato com o presente caso.
Destacando e valorizando a jurisprudência apresentada no bojo da suscitação de dúvida, temperando a posição do próprio Cartório, e servindo-se V. Exª. de destacados precedentes para fincar o arrimo da R. decisão que julgou improcedente a dúvida, o registro afinal se deferiu.
O aspecto mais importante da R. decisão, prolatada no referido processo, cinge-se à consideração de que o disposto no art. 1.641, II, do diploma civil de 2002 representa “censurável atentado contra a liberdade individual de pessoas maiores e capazes”, como se extrai do R. acórdão citado no bojo da R. decisão (Ap. Civ. 546.548-4/7-00, j. de 2.4.2008, rel. des. Caetano Lagrasta).
Vossa Excelência remata concluindo naquele mesmo processo: “a via jurisdicional vem reconhecendo a inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens a pessoa maior de 60 anos”.
A doutrina parece caminhar na mesma direção.
Sílvio Rodrigues, na nova edição do seu conhecido livro, agora sob a cura do Dr. Francisco J. Cahali, alevantou-se contra a regra reputando-a atentatória da liberdade individual, acenando com eventual inconstitucionalidade da regra, jungindo que “não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou uma sexagenária ricos se casem pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver” (Direito de família. Atualizada por Francisco J. Cahali, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 183).
Pode-se considerar, como a doutrina mais recente o faz, que o dispositivo contido no art. 1.641 do Código Civil é simplesmente inconstitucional ao obrigar o casamento pelo regime da separação de bens. Pode-se compreender a orientação das decisões jurisdicionais que apontam para o mesmo sentido.
Mas é preciso considerar, por outro lado, o verdadeiro nó górdio que claramente se divisa: como declarar a inconstitucionalidade da regra, imperando o registro e afastando, administrativamente, a vedação legal e suas evidentes consequências lógicas?
Nos casos anteriores, em que o registro foi denegado, elenquei a doutrina civilista tradicional para arrimo de nossas conclusões. Sempre se entendeu, sem hesitação, que a doação entre cônjuges, nestas peculiares condições, seria um tangenciamento à vedação legal. Por todos, Clóvis Bevilaqua (Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Vol. II, 4ª ed. São Paulo: Francisco Alves, 1933, p. 169, n. 6).
Mas o grande civilista não singrou isolado. A doutrina privatista não destoou dessa orientação e sempre sufragou o entendimento de que seria vedada as donationes inter virum et uxorem. Assim J. M. de Carvalho Santos (Código Civil Interpretado. Vol. V, 14ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, p. 52), Caio Mário da Silva Pereira (Instituições. Vol. V, 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 137-8, n. 404), Washington de Barros Monteiro (Curso. Direito de Família. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 180-1), Orlando Gomes (Direito de família. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 201, n. 121), para ficar nos exemplos clássicos.
A jurisprudência administrativa-registral sufragou, em passado recente, o mesmo entendimento. O C. Conselho Superior da Magistratura enfrentou a mesma questão e os argumentos agitados são os mesmos já apontados supra:
“A doação celebrada entre os cônjuges, no entanto, resta inviabilizada, dado o regime de bens em tela. No âmbito de nosso direito privado, é possível aos cônjuges celebrarem doação entre si, mas desde que não subsista incompatibilidade com o regime matrimonial de bens e, em se cuidando de separação legal, imposta nos termos do artigo 258 do Código Civil, a liberalidade restará eivada de nulidade, em razão do disposto nos artigos 226, 230 e 312 do mesmo diploma legal. Está ausente a legitimidade do doador para realizar tal ato de disposição patrimonial, eis que a separação legal de bens é separação pura e simples, de maneira que os bens adquiridos antes da celebração do matrimônio, como é o caso, ainda que considerado o disposto na Súmula 377 do Egrégio Supremo Tribunal Federal, permanecem sempre incomunicáveis. A consumação da liberalidade seria, aqui, uma maneira de burlar o regime imposto pelo legislador, frustrando seus efeitos. Ora, o registrador deve realizar o exame qualificatório de todos os títulos recepcionados voltado para o atendimento do princípio da legalidade e, no caso presente, identifica-se sua potencial violação, pelo que o óbice deduzido subsiste e o registro desejado é inviável”. (Ap. Civ. 95.115-0/5, 19/12/2002, Localidade: São Paulo. Rel. Des. Luiz Tâmbara).
Qualificação registral – limites.
A doutrina e a jurisprudência, ao enfrentarem a questão da vedação legal e seus consectários, acenam para a direta afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do respeito aos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade.
Assim sustenta a doutrina especializada, brevitatis causa: Rolf Madaleno (Do regime de bens entre os cônjuges in Direito de Família o novo Código Civil, Dias, Maria Berenice e Pereira, Rodrigo da Cunha, org. Belo Horizonte: Del Rey, IBDFam, 4ª ed., 2006, p. 191), José Antônio Encinas Manfré (Regime matrimonial de bens no novo código civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 147, passim), Carlos Dias Motta (Direito matrimonial e seus princípios jurídicos. São Paulo: RT. 2007, p. 368 passim), Luciano Lopes Passarelli (Pacto antenupcial – regime matrimonial – separação total de bens. Doação – alienação – transferência de bens – cônjuge, comentários à decisão proferida no Processo 583.00.2007.240561-0 da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo-SP, 13.6.2008), etc.
Embora se possa concordar em linha com os ponderosos argumentos de tão ilustres doutrinadores, forçoso é reconhecer que, no âmbito estrito da qualificação registral, o registrador está sempre adstrito à lei, sujeitando-se ao princípio da legalidade. Entender diversamente implicaria conceder que, no caso concreto, ele poderia afastar a incidência da regra e negar a plena eficácia da lei, o que equivaleria, no limite, a considerar incidentalmente a inconstitucionalidade do preceito consagrado no novo Código Civil.
Justamente calha consignar que se busca o sentido normativo – expresso na vedação da confusão patrimonial (art. 1.641 do C. Civil) – dele extraindo os sentidos e conseqüências possíveis. O mais evidente deles é a vedação de tangenciamento da negativa legal que a donatio inter virum et uxorem pode vir a representar.
Concluindo, nos estritos limites da qualificação registral, aferrado que se encontra o registrador à norma, não se pode desconsiderar as conseqüências de uma interpretação lógica do citado art. 1.641 do Código Civil.
Jurisprudência
Em dúvida suscitada por este Registro (Processo 583.00.2007.104240-6) a denegação de registro foi confirmada por decisão proferida pela Magistrada Dra. Sabrina Martinho:
“O objetivo do legislador ao estabelecer o regime de separação obrigatória para maiores de 60 anos é a proteção de interesses dos cônjuges e de terceiros.
“Ademais, o artigo 1641, inciso II, do atual Código Civil também estabeleceu o regime de separação obrigatória para a pessoa maior de 60 anos. Assim, a presunção legislativa de proteção de interesse dos cônjuges e de terceiros não foi modificada. A norma referida é de aplicação cogente, de forma que não é possível admitir a mutabilidade”.
“Dessa forma, não se pode admitir a doação entre os cônjuges, pois tal concessão seria forma de burlar o regime imposto por lei”.
Por fim, por lealdade ao debate, consigno que o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, vem de decidir que é perfeitamente possível a doação entre cônjuges:
EMENTA: Processual civil. Recurso especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Casamento. Regime da separação legal de bens. Cônjuge com idade superior a sessenta anos. Doações realizadas por ele ao outro cônjuge na constância do matrimônio. Validade.
– São válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens, por três motivos: (i) o CC/16 não as veda, fazendo-no apenas com relação às doações antenupciais; (ii) o fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de sessenta anos ou mulheres maiores que cinqüenta, presente à época em que promulgado o CC/16, não mais se justificam nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representam ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; (iii) nenhuma restrição seria imposta pela lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o Código Civil, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a união estável em detrimento do casamento, em ofensa ao art. 226, §3º, da Constituição Federal. Recurso especial não conhecido. (Recurso Especial 471.958 – RS).
Conclusões
As importantes questões estão lançadas para superior consideração de Vossa Excelência.
Aproveito o ensejo para reiterar a Vossa Excelência os protestos de estima e consideração.
São Paulo, 2 de setembro de 2010.
Sérgio Jacomino
5º Oficial.
[1] Para acessar as decisões e documentos citados aqui: http://wp.me/pcDhK-cb