Protocolo 264.347. Cédula de crédito bancário – requisitos formais
Protocolo 264.347 – Interessado: Banco do Brasil S/A.
Nota do editor: v. Ap. Civ. 1009982-57.2018.8.26.0077, Birigui, j. 23/8/2019, DJe 25/9/2019, rel. des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco.
Cédula de crédito bancário. Hipoteca. Comparecimento do credor. Assinatura das partes e reconhecimento de firmas.
Sérgio Jacomino, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, provocado, por requerimento do Banco do Brasil S/A, a suscitar dúvida, nos termos do art. 198 da Lei 6.015, de 1973, decide reconsiderar a devolução anteriormente feita por este Registro em razão dos fundamentos seguintes.
Procedimentos preliminares
Foi apresentada para registro a Cédula de Crédito Bancário n. 20/1410-4, emitida em 29 de outubro de 2012 em favor do Banco do Brasil S/A figurando como emitentes e garantes ST e ACT, nos termos da Lei 10.931, de 2004.
Para garantia da obrigação os emitentes deram em hipoteca o imóvel objeto da Matrícula 31.866, de propriedade dos emitentes.
Protocolado sob número 263.167, o título não mereceu ingresso pelas razões que abaixo se especificarão. Não concordando com as exigências, reingressando o título (protocolo 264.347) o Banco do Brasil S/A requereu a suscitação de dúvida.
As exigências deste Registro Predial foram veiculadas por nota devolutiva do seguinte teor:
1) Constar no campo de assinaturas da Cédula de Crédito Bancário, as respectivas assinaturas e identificação (RG/CPF) do(s) representante(s) do credor, ou seja, BANCO DO BRASIL S/A (com firma reconhecida, em cartório de notas desta Capital – São Paulo), tendo em vista que a garantia (hipoteca), é constituída na própria Cédula, nos termos do artigo 42 da Lei 10.931/2001, cuja legislação aplicável é o artigo 176, § 1.º, III, item 2, alínea b, da Lei n. 6.015/73 – Lei de Registros Públicos.
2) Apresentar, em cópia autenticada, a prova de representação do credor, ou seja, BANCO DO BRASIL S/A vigente à época da assinatura da Cédula.
3) É indispensável a assinatura de duas testemunhas no título (artigo 221, II, da Lei n. 6.015/73 – Lei de Registros Públicos).
4) Todas as vias do título deverão estar devidamente rubricadas e com as firmas reconhecidas, de todas as partes, inclusive testemunhas, consoante artigo 221, II, da Lei n. 6.015/73 – Lei de Registros Públicos.
5) A Cédula de Crédito Bancário deverá ser apresentada em no mínimo, duas vias idênticas, sendo que somente uma via (a via do credor), deve ser negociável, devendo as demais vias serem apresentadas em cópia tirada em impresso idêntico ao da cédula, com a declaração impressa “Via não negociável”, em linhas paralelas transversais, tendo em vista que, uma via “não negociável” ficará arquivada neste Registro Imobiliário (artigo 194 da Lei n. 6.015/73 – Lei de Registros Públicos).
Hipoteca – assinatura das partes e outros requisitos formais
A CCB – Cédula de Crédito Bancário foi instituída pela Lei 10.931, de 2004. Como título de crédito, seus requisitos formais estão previstos na lei indicada, aplicando-se, no que com ela não conflitar, as disposições da legislação comum ou especial aplicável (art. 27, § único da Lei 10.931, de 2004).
A CCB é título executivo extrajudicial podendo ser emitida com ou sem garantia real “cedularmente constituída” (art. 27, caput, da referida lei). Por outro lado, reza o artigo 32 da dita lei que “a constituição da garantia poderá ser feita na própria Cédula de Crédito Bancário ou em documento separado”.
A chave para compreender a exigência do cartório vem nos artigos 30 e 42 da Lei 10.931/2004, verbis:
Art. 30. A constituição de garantia da obrigação representada pela Cédula de Crédito Bancário é disciplinada por esta Lei, sendo aplicáveis as disposições da legislação comum ou especial que não forem com ela conflitantes.
…
Art. 42. A validade e eficácia da Cédula de Crédito Bancário não dependem de registro, mas as garantias reais, por ela constituídas, ficam sujeitas, para valer contra terceiros, aos registros ou averbações previstos na legislação aplicável, com as alterações introduzidas por este Lei.
Do conjunto normativo supra citado, pode-se chegar às seguintes conclusões:
- A CCB é título de crédito representando promessa de pagamento em dinheiro (art. 26).
- A CCB pode ser emitida com garantia real cedularmente constituída (art. 27).
- A constituição da garantia real poderá se dar na própria Cédula (art. 32).
- A constituição de garantia será especificada na CCB, observadas a legislação comum ou especial aplicável (art. 27, § único c.c. art. 30).
- A constituição da garantia real, para plena eficácia e valer contra terceiros, é dependente dos registros e averbações previstos na legislação aplicável.
Vistos em conjunto, tais dispositivos apontam para a necessidade de se revisitar disposições legais aplicáveis à constituição de garantias reais em nosso sistema jurídico aplicáveis ao caso concreto.
A hipoteca é um contrato solene (art. 1.424 c.c. art. 1.492 e art. 108 do Código Civil). Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “constitui-se a hipoteca por força de contrato. Deverá existir um instrumento, “que perpetua a declaração de vontade das partes ou que materializa a incidência do ônus em determinado objeto”[1]. Ainda, na senda do civilista, a constituição da hipoteca exige o acordo de vontades, verificação da capacidade das partes, além da forma obrigatória prescrita em lei:
A hipoteca se integra com aquele que recebe a garantia real (credor hipotecário) e com quem outorga (devedor principal ou terceiro garante), além das testemunhas instrumentárias. Exige um acordo de vontade, vale dizer a declaração hipotecando, e a aceitação do credor. (idem, ibidem).
Vê-se que a constituição da hipoteca, além dos requisitos legais especiais e ordinários, requer um concurso de vontades reduzido a forma especial e prescrita em lei e subsequente inscrição, para validade e eficácia perante terceiros.
Título cambiariforme a formalidades extrínsecas
Causa espécie um título de crédito que possa trazer embarcado um contrato atípico de garantia real que, em certa medida, inova em relação à regulação contemplada no microssistema do crédito rural (Dec.-Lei 167, de 14 de fevereiro de 1967).
A começar pela modalidade de garantia mais utilizada pelas instituições bancárias na atualidade – a alienação fiduciária. Tal garantia pressupõe o estabelecimento de cláusulas e condições que devem ser contratadas pelas partes envolvidas. Assim, por exemplo, as condições previstas no art. 1.362 do Código Civil, bem como as regras previstas no art. 24 da Lei 9.514, de 1997. Além disso, a mesma Lei, ao tratar dos requisitos da cédula, estabelece disposições que poderão ser “pactuadas” pelas partes (art. 28, § 1º, caput da Lei 10.931/2004) o que leva à ideia de uma “contrato cedular”.
De fato é difícil assimilar a ideia de constituição de um direito de propriedade, ainda que o seja em caráter resolutivo e como elemento acessório do crédito, por declarações unilaterais do devedor. No caso específico da CCB, o credor deve discriminar os valores do crédito em extratos e planilhas de cálculo que farão parte da cédula (art. 28, parag. 2, II, da Lei 10.931/2004). A declaração não é do devedor, certamente, o que afastaria a ideia de unilateralidade na emissão da cártula e levaria à necessidade de comparecimento do credor, já que esses elementos são por ele elaborados e integram a cédula. Mesmo a estipulação de obrigações a serem cumpridas pelo credor – como as previstas no art. 28, § 1º, VII da Lei 10.931/2004 – ou as deduções decorrentes de pagamentos parciais, tudo isso torna instável a ideia integral de cartularidade, ferindo, aparentemente, o princípio de literalidade dos títulos de crédito.
Fran Martins já aludia à natureza singular dos títulos de crédito representados pelas cédulas de crédito rural. Lecionava que a cédula é um título que, “procurando financiar atividades rurais, se vale de princípios dos títulos de crédito em geral (princípios que atuam no campo do direito comercial), possuindo, contudo, outras características que dão a esses documentos uma configuração própria”[2]. A configuração singular desses títulos de crédito se evidencia no fato de que o título poderá ser exigível não pela importância de face, não prevalecendo, aqui, o princípio da literalidade, que é característico dos títulos de crédito em geral[3].
Requisito ad substantiam da constituição do direito real por instrumento público
Outra particularidade sobressai do sistema: não há uma só disposição legal na lei que preveja a constituição da garantia por instrumento particular – a exemplo do que ocorre com a cédula de crédito imobiliário, que nos termos do art. 18, § 4º, da Lei 10.931/2004 poderá ser emitida “mediante escritura pública ou instrumento particular”.
A exigência legal que deriva do art. 108 do Código Civil, impondo a escritura pública para a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, não foi excepcionada pela legislação especial. Logo, seria de rigor exigir-se a emissão do título com garantia real cedularmente constituída por instrumento notarial. É do seguinte teor o referido art. 108 do Código Civil:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Como vimos, não dispõe a lei ordinária ou especial em sentido contrário. Logo, aplicável a regra do referido dispositivo legal que impõe, como requisito essencial, o instrumento público.
Poderia ser arguida a tese de que, desde 1967, data do advento do já referido Dec.-Lei 167, a constituição das garantias reais ou fidejussórias sempre se deu por instrumento particular, o que não deixa de ser verdade. Mas é preciso reconhecer que não existe, no dito decreto-lei, qualquer disposição legal que dispense o emitente de formalizar a cártula com as garantias reais por meio de instrumento público.
Aqui há um aspecto digno de nota. A cédula de crédito rural hipotecária havia sido prevista originariamente pela Lei 3.253, de 27 de agosto de 1957 que, em seu artigo 6º estabelecia a facultatividade de constituir a garantia cedular por meio de escritura pública:
Art. 6º É instituída a cédula rural hipotecária, como forma de constituição direta da hipoteca de imóveis rurais outorgada em garantia dos empréstimos bancários a que se refere o art. 1º desta lei, ressalvada a faculdade de uso da escritura pública.
A contrario, poder-se-ia concluir que a emissão da cédula rural hipotecária poderia se dar por meio de mero instrumento particular.
Já o penhor rural, previsto na Lei 492, de 30 de setembro de 1937, poderia ser contratado por instrumento público ou particular (art. 14). Todavia, a emissão da cédula pignoratícia seria feita diretamente pelo Oficial do Registo Imobiliário, a requerimento do credor. Diz o art. 15 da citada lei:
Art. 15. Feita a transcrição da escritura de penhor rural, em qualquer de suas modalidades, pode o oficial do registo imobiliário se o credor lhe solicitar, expedir em seu favor, averbando-o à margem da respectiva transcrição, e entregar-lhe, mediante recibo, uma cédula rural pignoratícia, destacando-a, depois de preenchida e por ambos assinada, do livro próprio.
Nesse caso, a cédula era, ela própria, um instrumento que se revestia do caráter público, pois era emitida pelo próprio oficial do Registro de Imóveis.
Na vigência do Dec.-Lei 167, de 14 de fevereiro de 1967 as cédulas seriam inscritas nos livros por ela criados (art. 31 e seguintes), nada dispondo a lei sobre a sua constituição por instrumento público ou particular.
Legislação comum ou especial.
Para perfeito enquadramento da CCB no quadro geral das garantias cedulares, é preciso investigar o sistema ao qual a operação se vincula e regula. Diz o art. 27, § único da Lei 10.931, de 2004, que “a garantia constituída será especificada na CCB, observadas as disposições deste Capítulo e, no que não forem com elas conflitantes, as da legislação comum ou especial aplicável”. Do mesmo teor o artigo 30:
Art. 30. A constituição de garantia da obrigação representada pela Cédula de Crédito Bancário é disciplinada por esta Lei, sendo aplicáveis as disposições da legislação comum ou especial que não forem com ela conflitantes.
A legislação comum é a civil, ordinária. A especial, eventualmente, poderia ser a própria LRP. A lei da CCB não o diz. Quando se quis vincular o título ao microssistema das cédulas, o legislador indicou (por exemplo na Lei 6.840, de 1980, art. 5 – legislação que trata da cédula de crédito comercial).
Como deverá o exegeta ajustar o foco para aplicar, às CCBs, a legislação ordinária ou especial com certeza e segurança?
Já vimos que a regra da escritura pública não foi afastada tácita ou expressamente. Vimos, também, que o desenvolvimento do procedimento de emissão cedular partiu de ato do próprio Oficial do Registro, emprestando, à cártula, a característica de instrumento público.
Embora o vigente Decreto-Lei 167, de 1967, não proíba a constituição cedular da garantia real, fato é que também não faculta a dispensa do instrumento público.
Como ficamos?
É preciso responder com a tradição. E ela indica que ao longo das últimas quatro décadas não houve qualquer dissensão que tenha alcançado as esferas normativas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, nem que tenha sido debatida no âmbito do Conselho Superior da Magistratura.
A única decisão que poderia ser agitada foi proferida no Processo CG 61.371/1982, com parecer de 14.6.1982 de lavra do magistrado José Horácio Cintra Gonçalves Pereira. Neste processo, discutia-se a incidência de regras hauridas da Lei de Registros Públicos sobre as cédulas de crédito. No caso concreto, o mesmo Banco do Brasil S/A buscava a dispensa do reconhecimento de firmas dos emitentes acenando com o Decreto 83.740 de 1979, que criou o Programa de Desburocratização do Governo. A ideia que perpassa o pedido e fundamenta a decisão é que as cédulas são títulos de crédito peculiares, cambiariformes, aos quais se aplicariam as normas de direito cambial, não a legislação civil. Diz o ilustre parecerista:
Verifica-se do exame da legislação específica (DL 167/67 – Cédulas de Crédito Rural; Dec.-lei 413/69 – Cédulas de Crédito Industrial; Lei 6.313/75 – Cédulas de Crédito à Exportação; Lei 6.840/80 – Cédulas de Crédito Comercial) que as cédulas se sujeitam às normas gerais do Direito Cambiário, não guardando, assim, similitude com os escritos particulares para os quais se exige reconhecimento de firma (art. 221, II, da Lei de Registros Públicos).
Acresce mencionar que a referida legislação específica exige tão-somente “a assinatura do próprio punho do emitente ou de representante com poderes especiais”. Ora, nesse caso, se fôssemos admitir a incidência da Lei de Registros Públicos (art. 221, II), exigindo o reconhecimento de firma, teríamos, obrigatoriamente, que exigir também as testemunhas, contrariando, dessa forma, a lei própria, acrescentando-lhe requisito não previsto[4].
Por esta R. decisão, vimos que a exigência de reconhecimento de firmas, comparecimento de testemunhas, verificação de representação, etc. – que foram as exigências formuladas por este Registrador –, foram expressamente dispensadas em casos análogos e não haveria razão de ressuscitar um debate que se acha encerrado há muito.
Assim é em sede de direito cambiário, em que imperam os princípios da celeridade e da informalidade, ainda que se pudesse, com Rubens Requião, advertir que para emissão dos títulos de crédito, para segurança de terceiros, impõem-se “regras solenes e extremamente formalistas”:
Vale assinalar um fenômeno curioso no que se refere ao estado atual de nossa legislação mercantil: está ela marcada, muitas vezes, de profundo formalismo antagônico, aparentemente, ao espírito do direito comercial, que sempre desbordou das regras formais do direito civil. Mas esse formalismo, que se acentua, sobretudo, no que se refere à instituição dos títulos de crédito ou das sociedades por ações, é básico para assegurar a rapidez de sua circulação, protegendo o terceiro de boa-fé. Na criação desses efeitos comerciais, como os títulos de crédito e mais propriamente as ações, a lei impõe uma série de formalismos e solenidades para proteger e garantir o interesse público. Mas, uma vez cumpridos tais preceitos, a celeridade da circulação em massa é feita praticamente sem formalidades, como era o caso dos títulos ao portador, cuja transmissão ocorria simplesmente por tradição manual do documento”[5].
Comparecimento do credor no título
Uma última alusão se fará à desnecessidade do comparecimento do credor hipotecário na cédula de crédito bancário.
Apreciando recurso especial impetrado no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Barros Monteiro destaca que a lei não exige a assinatura do credor na cédula (no caso, cédula de crédito rural), “mas tão-somente o seu nome”. A decisão figura na ementa oficial do v. aresto:
CÉDULA RURAL HIPOTECÁRIA. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. REQUISITOS FORMAIS SATISFEITOS.
Firmado o aditivo à cédula rural pela emitente e avalistas, tem-se como ratificados os termos em que vazado o corpo principal da cártula, finalidade mesma para a qual se lavrou o mencionado aditivo.
Na cédula rural hipotecária, não constitui requisito indispensável a assinatura do credor, represnetando a sua falta, no aditivo, uma mera irregularidade[6].
Por todas as razões expostas, destacadas as contradições e lacunas apontadas, entendo que o pedido de registro mereça provimento, razão pela qual, reconsiderando a devolução anteriormente feita, defiro o acesso do título, cumpridas as formalidades legais.
São Paulo, março de 2013.
SÉRGIO JACOMINO,
Oficial Registrador.
[1] PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições. Vol. IV, Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 316. Vide igualmente, GOMES, Orlando. Direitos reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 417, passim.
[2] MARTINS. Fran. Títulos de crédito. Vol. II, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 253.
[3] Idem, ibidem, p. 254.
[4] Processo CG 61.371/1982, São Paulo, parecer de 14.6.1982 de lavra de José Horácio Cintra Gonçalves Pereira.
[5] REQUIÃO. Rubens. Curso de direito comercial. 1º vol. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 28.
[6] RESp 6.015-MG, j. 8.4.1996, DJ de 19.8.1996, rel. para o acórdão min. Barros Monteiro.