0002119-37.2014.8.26.0100. condomínio – vaga de garagem – alienação
À Exma. Sra.
Dra. Tânia Mara Ahualli,
MM. Juíza da 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo
São Paulo.
Suscitação da dúvida – Protocolo 271.257 – Processo 0002119-37.2014.8.26.0100
Interessado: HA
Condomínio – vaga de garagem. Alienação a terceiros estranhos ao condomínio.
- Processo 0002119-37.2014.8.26.0100, j. 16/06/2014, DJe 07/07/2014, dúvida julgada procedente. Dra. Tânia Mara Ahualli
Sérgio Jacomino, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, nos termos do art. 198 da Lei 6.015, de 1973 e em atenção ao requerimento expresso anexo, vem suscitar dúvida, pelos motivos de fato e de direito abaixo indicados.
Aspectos preliminares
HA, representado por procuradores indicados no requerimento anexo, não se conformou com a exigência oposta ao registro de seu título.
De acordo com o art. 1.331, §1º do Código Civil, com a recente modificação da Lei 12.607, de 2012, para a alienação de vaga de garagem é necessário expressa disposição autorizadora consagrada na convenção do condomínio.
Não se resignando com tal exigência, enunciada no protocolo 268.100, requereu a suscitação de dúvida. Fundamenta seu pedido no argumento central que pode assim ser resumido: tendo o negócio sido celebrado em 1º de agosto de 2008 tratar-se-ia de típica situação representada por ato jurídico perfeito e acabado, não podendo ser atingido pela legislação superveniente que trata da matéria. Junge ainda que não se trataria de alienação recente, “pois alienada a unidade já está, mas o que se busca é simplesmente o registro do título para sua perfeita regularização”.
O título foi novamente prenotado (protocolo 271.257), inscrição que permanecerá válida até julgamento da presente dúvida, nos termos do art. 203 da Lei 6.015, de 1973.
Tempus regit actum
A questão preliminar – e que esgota as razões dos interessados – centra-se na definição do direito intertemporal aplicável a um negócio jurídico que, por definição, é um ato jurídico complexo e interdependente de seus elementos.
De fato, a aquisição da propriedade imobiliária, no sistema brasileiro, se dá com o concurso de dois elementos consubstanciais: titulus e modus. O título, em sentido material, é a causa mediata da aquisição do direito real – no caso concreto uma compra e venda; já o modus é representado pelo registro, causa imediata da aquisição. Será necessário o concurso desses dois elementos para que a aquisição imobiliária se possa aperfeiçoar e seja plenamente eficaz. Esta é a regra do art. 1.245 do Código Civil:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
Antes do registro competente não se pode dizer que tenha havido, propriamente, a alienação da unidade, como querem os interessados. O fato de não ter sido registrada a alienação traz inúmeras consequências jurídicas. Em primeiro lugar, o registro é obrigatório (art. 169 da LRP) e tem efeito constitutivo (art. 1.245 do CC). Em nosso sistema, de matriz romana e causalista (pela via dos glosadores), a criação, modificação, extinção ou transmissão de direitos reais sobre bens imóveis só se operam, por ato inter vivos, mediante título e inscrição no registro imobiliário competente (princípio da inscrição).
Afrânio de Carvalho destaca este aspecto ao indicar que nasce o direito real da conjugação de dois elementos: (a) título, isto é, o acordo de vontades que cria o jus ad rem, direito pessoal e (b) inscrição, que transforma o jus ad rem em jus in re, direito real. E segue:
A mutação jurídico-real desdobra-se, portanto, em dois estágios, um em que se celebra o contrato das partes tendentes a realizá-la e outro em que se realiza propriamente a mutação prevista por elas. Como o segundo se apoia no primeiro, sem que este se apresente regular, pela exibição de um título causal escoimado de vício ostensivo, não pode consumar-se o segundo, que consiste na inscrição desse título no livro próprio do registro, cujo fim é precisamente acolher os direitos reais caracterizados por sua legitimidade.
Assim, o direito de propriedade, que é o maior dos direitos reais e, além disso, o pressuposto dos demais, não nasce do título tendente à sua aquisição, mas da inscrição dele no Registro de Imóveis. A inscrição desempenha em relação aos imóveis o papel outrora desempenhado pela tradição, que aliás ainda perdura com referência aos móveis: é uma tradição solene”. (CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 163-4).
No mesmo sentido: Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. I, p. 96; Limongi França. A Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido, 4ª ed. São Paulo: RT, p. 252-262.
Comentando a recente alteração legislativa da matéria, Francisco Eduardo Loureiro sublinha que a alteração do regime legal colhe tanto os novos quanto os antigos condomínios, pois, segundo ele, trata-se de norma de caráter público, cogente, “não existindo direito adquirido a determinado regime jurídico”. (LOUREIRO. Francisco Eduardo. Código Civil comentado. PELUSO, Cézar, coord. 7ª ed. São Paulo: Manole, 2013, p. 1.340).
A jurisprudência paulista não discrepa. Citem-se, brevitatis causa:
- REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida – Escritura de venda e compra lavrada no ano de 1986 – Apresentação a registro na vigência da Lei n° 8.212/91 – Necessidade de apresentação da certidão negativa de débitos junto à Receita Federal – Inexistência de direito adquirido, em ato complexo não consumado por inteiro – Aplicação da lei vigente ao tempo do registro – Registro inviável – Recurso improvido. (Ap. Civ. 35.714-0/0, Osasco, j. 30.12.1996, Dj. 24.2.1997, rel. des. Márcio Martins Bonilha).
- REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Escritura pública lavrada em 26 de agosto de 1959 – Nomes dos vendedores e dos titulares do domínio divergentes – Necessidade de retificação do instrumento – Princípio da especialidade subjetiva – Tempus regit actum – Recurso não provido. (Ap. Civ. 990.10.172.750-1, São Paulo, j. 3.8.2010, DJ 22.11.2010, rel. des. Munhoz Soares).
- REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida julgada procedente. Negativa de registro de escritura pública de venda e compra de imóveis. Ausência de certidão negativa de débitos expedida pela Receita Federal em nome da empresa vendedora e das guias referentes ao recolhimento da multa pelo atraso no pagamento do ITBI. Impugnação parcial que inviabiliza o acolhimento do recurso. Aplicação do princípio tempus regit actum ao registro de imóveis. Recurso não provido. (Ap. Civ. 0493.133.85.2010.8.26.0000, Campos do Jordão, j. 19.4.2011, DJ de 6.7.2011, rel. des. Maurício Vidigal).
- REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura de Compra e Venda lavrada antes da averbação da indisponibilidade, mas apresentado a registro depois dela – Impossibilidade de registro até que a indisponibilidade seja cancelada por quem a decretou – Tempus regit actum – Precedentes do CSM – Recurso não provido. (Ap. Civ. 0015089-03.2012.8.26.0565, São Caetano do Sul, j. 23.8.2013, DJ 17.10.2013, rel. des. José Renato Nalini).
Em conclusão, aplica-se, ao caso concreto, a lei vigente à época do Registro – Código Civil, art. 1.331, § 1º, com a redação dada pela recente Lei Federal 12.607, de 2012. Tal dispositivo legal colhe tanto os antigos condomínios (como é o caso tratado neste processo) quanto os novos.
Alienação de vagas de garagem
Mas o problema do direito intertemporal não resolve totalmente o problema. A questão de fundo é a possibilidade de alienação da vaga de garagem a terceiro estranho à comunidade condominial sem a correspondente autorização colegiada (convenção condominial).
A verdade é que a recente Lei 12.607, de 2012, tornou ainda mais complexa – para não dizer confusa – a regulação de uma matéria que reconhecidamente encerra grandes dificuldades, como é o caso das vagas de garagem nos condomínios.
Reza o novel dispositivo legal:
Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos.
§ 1º As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio.
O artigo 1.331, caput, conjugado com o seu parágrafo primeiro, delimitam o seu campo de incidência. Parece tratar-se, na hipótese legal, de unidades autônomas, propriedades exclusivas e independentes, especificadas, em numerus apertus, no dito § 1º: apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas, abrigos para veículos e que-tais.
O Conjunto Z. compõe-se de 398 boxes de garagem, perfeitamente individualizadas e matriculadas. Tratam-se de unidades autônomas para todos os efeitos legais. Tanto a especificação de condomínio, quanto a sua convenção, silenciam a respeito da alienação dos ditos boxes – seja entre os próprios condôminos, seja para pessoas estranhas ao condomínio.
Incidiria, pois, no caso concreto, a vedação do art. 1.331, § 1º do Código Civil.
Causa, de fato, perplexidade a alteração legislativa. Guiados, na exegese do dispositivo legal, ao menos pela via da mens legislatoris, é possível concluir – como se pode concluir do texto – que a lei criou uma hipótese de inalienabilidade relativa das vagas de garagens. Diz o autor do projeto, senador Marcelo Crivella:
“Ora, ante a escalada crescente de violência e a insegurança que grassa na população, não é recomendável criar mais um ponto de vulnerabilidade nos condomínios edilícios, sobretudo para as famílias, nos tipos residenciais” (PLS 219, de 2003, Diário do Senado Federal, 31.5.2003, p. 13.888).
Mas a regra não se limitou aos condomínios unifamiliares, mas colheu, em sua redação aberta, todo e qualquer condomínio edilício.
Unidade autônoma ou vaga vinculada?
É preciso, contudo, submeter à apreciação de Vossa Excelência – eventualmente em socorro dos próprios interessados – a posição assumida por Francisco Eduardo Loureiro, na obra citada. Segundo este autor, as limitações do referido § 1º do art. 1.331 alcançariam apenas e tão-somente “as vagas de garagem indeterminadas, ou mesmo vagas determinadas que se encontrem vinculadas a uma unidade autônoma principal, seja habitacional ou empresarial”. (op. cit. p. 1.340).
Mas pode-se refutar as conclusões do especialista na consideração dos seguintes aspectos:
A lei civil, no dito art. 1.331, claramente dispôs sobre os “abrigos para veículos” que se constituem como unidades autônomas – elencados a latere de exemplos análogos trazidos pela própria lei: apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas, etc. Não há limitação nem especialização de qualquer espécie, nem distinção de modalidades correntias de vagas de garagem – e nem mesmo tal aspecto mereceu qualquer consideração no projeto, pareceres e tramitação do projeto de lei referido.
Ainda que se admita que as vagas indeterminadas ou vinculadas possam ser cedidas, é preciso distinguir as hipóteses.
Vagas indeterminadas de garagem integrantes de uma só unidade autônoma – “garajão”. Nesse caso, pode-se querer alienar uma fração ideal de uma unidade autônoma que abarca todo o espaço de estacionamento. Estamos diante de uma típica situação de condomínio civil regulando relações jurídicas entre comproprietários de uma mesma vaga de garagem. Portanto, não deixa de ser alienação de unidade autônoma, ainda que se refira a parte (fração ideal), subsumindo-se, a hipótese, à regra geral do citado art. 1.331, § 1º do CC.
Vagas determinadas vinculadas. Como vagas acessórias, vinculadas à unidade autônoma, o regramento próprio se encontrará em outro dispositivo legal. Trata-se do art. 1.339 do CC. que, de fato, faculta a alienação de parte acessória a terceiros, “se a ela não se opuser a respectiva assembleia geral”.
Ainda aqui nos deparamos com o paradoxo de se prever legalmente a alienação de parte comum do condomínio (acessória da unidade autônoma) cindindo-se a relação íntima que a parte acessória mantém com a principal (unidade autônoma).
A vaga de garagem, considerada como bem acessório, é modalidade aceita na doutrina e sua alienação sempre esteve restrita aos comproprietários do principal. Assim a conceitua PONTES DE MIRANDA: “direito real relativamente separado, portanto transferível a outro comuneiro, de modo que outro comuneiro (não o estranho!) pode adquiri-lo”. (MIRANDA. Pontes de. Tratado. T. XII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 313, § 1.363, n. 3, 4 e 5. No mesmo sentido: SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado… Vol. IV. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 289, n. 683).
Por fim, a vaga acessória da unidade autônoma, a ela vinculada, não pode ser alienada a pessoa estranha ao condomínio. “Como direito acessório” – esclarece Caio Mário da Silva Pereira – “adere à unidade, mas desta é destacável para efeito de sua cessão a outrem”. E segue o especialista:
Se a ela não estiver atribuída fração de terreno, somente pode o direito ser capitulado como elemento acessório típico. Como tal não pode ser alienada a pessoa estranha ao condomínio, pois no regime da propriedade horizontal não há direito autônomo sem fração ideal de terreno correspondente. Poderá, contudo, ser cedido o seu uso se a convenção não o proibir” (PEREIRA. Caio Mário da Silva. SOUZA. Sylvio Capanema de. CHALHUB. Melhim Namem, atualizadores. Condomínio e incorporações. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 46, n. 31-A).
Na mesma obra, atualizada por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub, encontramos idêntica orientação: a alienação ou locação das vagas de garagem ficam vedadas a pessoas estranhas, salvo autorização expressa da convenção. Repercutindo os motivo do projeto de lei modificativo, concluem: “atendeu-se, assim, a justificada preocupação com a segurança dos condôminos e moradores”. (op. cit. p. 49, n. 31-C).
Em conclusão, respeitada a opinião abalizada do magistrado paulista, não se acha na lei a distinção que orientou o referido autor nas conclusões a que chegou, razão pela qual, respeitada a sua posição, mantenho o entendimento de que incide, no caso concreto, a regra do art. 1.331, § 1º do CC, que reclama, para alienação das vagas de garagem, autorização expressa consignada na convenção de condomínio.
Submeto à apreciação de Vossa Excelência o pedido e as razões de denegação do registro, devolvendo a qualificação registral do título anexo.
São Paulo, 10 de dezembro de 2013.
Sérgio Jacomino,
Registrador