Quinto Registro de Imóveis de São Paulo

Informação e prestação de serviços

0051973-34.2013.8.26.0100. Publicidade notícia – Averbação de existência de demanda – Crime de desobediência.

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Protocolo 268.548 – Interessado: Juízo da 26ª Vara Cível de São Paulo

Publicidade notícia. Averbação de existência de demanda. Averbação cautelar – acautelatória – preventiva. Mandado judicial – qualificação registral. Crime de desobediência.

A qualificação registral de títulos judiciais é poder-dever do Registrador e não representa hipótese de consumação de crime de desobediência. Reiteração da ordem – cumprimento.

Sérgio Jacomino, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, vem perante Vossa Excelência expor o seguinte[1].

Em 17.4.2013 foi recepcionado (e imediatamente prenotado) ofício judicial extraído do Processo 0200566-15.2007.8.26.0100 oriundo da 26ª Vara Cível da Capital de São Paulo. O título foi prenotado sob número de ordem 266.407 e em seguida devolvido com a nota devolutiva (ND) que foi encaminhada ao R. Juízo remetente.

Posteriormente, a 4.7.2013, o mesmo R. Juízo determinaria que um Oficial de Justiça se abalasse até esta Serventia e aqui intimasse este Oficial para cumprimento de nova ordem judicial, agora sob pena de crime de desobediência. Além disso, acenou com a tomada de “providências também no âmbito administrativo e, havendo prejuízo, cível” (loc. cit).

Havendo inequívoca reiteração da ordem, cumprimos à risca a determinação contida nos ofícios referidos sem maiores delongas.

Muito embora o comando tenha sido cumprido, em respeito à determinação judicial expressa, entendemos que o ato de averbação determinado não se acomodaria perfeitamente ao dispositivo legal invocado por Sua Excelência – o que pode ensejar confusões posteriormente.

Confusões e controvérsias – isto é tudo o que o Registro de Imóveis pode e deve evitar.

A fim de evitarmos controvérsias no futuro, para ressalva de responsabilidade deste Registrador, submeto o caso à superior apreciação de Vossa Excelência, que decidirá o que de Direito.

Publicidade-notícia

Sua Excelência, o juiz da 26ª Vara Cível da Capital, alude à dita averbação qualificando-a de singela averbação de notícia sobre a demanda. Recupera uma terminologia antiga do direito registral ao acenar à publicidade de simples notícia.

Para o que nos interessa mais de perto, a determinação se assenta e fundamenta no art. 167, II, 12, da Lei 6.015/1973, que reza:

Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.

(…)

II – a averbação

(…)

12) das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados;

Salta à vista que as decisões averbáveis, neste caso, serão, exclusivamente, as que têm por objeto atos ou títulos devidamente inscritos. No caso concreto, não há qualquer registro (ou mesmo averbação) relacionados com os direitos de promissário-comprador que foram penhorados, como se indica expressamente na r. decisão. Verbis:

Oficie-se incontinenti ao oficial de imóveis para que, com base no art. 167, II, “12” da Lei 6.015/1973, averbe notícia da presente demanda na matrícula dos dois imóveis cujos direitos de promissário-comprador foram penhorados neste processo.

Não há promessas registradas nas matrículas respectivas. Tampouco os executados titularizam direitos inscritos. As partes são inteiramente desconhecidas do Registro. Tal circunstância foi apuradamente relatada a Sua Excelência indicando que, por esta via legal, a averbação não poderia ser consumada.

Salvo melhor juízo, não havia outra saída que não alertar, de forma técnica, o óbice encontrado, prestando, o Registro, assim, a sua costumeira contribuição para a efetiva prestação jurisdicional.

Averbação preventiva ou acautelatória

A medida determinada pelo R. Juízo sugere a prática de uma espécie de inscrição preventiva ou acautelatória. As averbações preventivas, premonitórias ou acautelatórias sempre mereceram um destaque na doutrina. Mas essas averbações, a exemplo do que ocorre com os fatos inscritíveis em sentido lato (arrolados no art. 167 da Lei 6.015, de 1973) representam um numerus clausus; o rol que as prevê é reconhecidamente taxativo [2].

É da tradição do nosso direito registral, portanto, limitar o acesso de tais atos ao Registro de Imóveis e esta tendência nos vem desde o primeiro regulamento de Registros Públicos, baixado após o advento do Código Civil (art. 5º, VIII do Decreto 4.827, de 1924, especialmente o art. 267 do Decreto 18.542, de 1928; art. 281 do Decreto 4.857, de 1939, até o vigente art. 167, II, 12 da Lei 6.015/1973).  

Comentando o art. 281 do antigo Regulamento de 1939, Murillo Renault Leite define o escopo do dispositivo legal: “averbar-se-ão as decisões, recursos e seus efeitos. Com a inscrição, os bens serão considerados litigiosos para o efeito de apreciação de fraude das posteriores alienações”. [3] No mesmo sentido doutrina Serpa Lopes, para quem o elenco dos fatos inscritíveis, na quadra das constrições judiciais, comporta unicamente o acesso das penhoras, arrestos e sequestros, além das citações em ações reais ou pessoais reipersecutórias (inclusive possessórias):

Resulta do exposto que a inscrição de ações judiciais e das demais medidas processuais equivalentes só podem ser admitidas no Registro Imobiliário quando estritamente se acomodem dentro do quadro dos dispositivos legais que as contemplam. Assim, não podem obter inscrição as ações não participantes da natureza real ou não filiadas à categoria das reipersecutórias. A que assim se fizer, é vazia de efeitos[4] (Grifos nossos)

As inscrições de decisões e de seus efeitos, elementos integrados no mesmo dispositivo legal, apontavam diretamente à classe de ações cujo acesso registral era previsto expressamente – ações reais e pessoais reipersecutórias. Com o advento da Lei 6.015, de 1973, tivemos uma inovação na matéria com o destaque do elenco das ações reais e pessoais reipersecutórias (agora locadas no art. 167, I, 21 do diploma legal) e a previsão de averbação das “decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados” (repousadas no art. 167, II, 12).

Todavia, o entendimento não se modificou substancialmente. Os primeiros comentadores da vigente Lei de Registros Públicos já advertiam que essas averbações deveriam se limitar a dar publicidade “ao fato de haver o Judiciário emitido pronunciamento ou ordenado providência acerca de atos objeto de registro ou dos próprios registros, para conhecimento de terceiros”[5].

As averbações do art. 246 – um numerus apertus?

Por outro lado, é preciso enfrentar o tema da reconhecida exceção à tese da taxatividade dos fatos inscritíveis pelo art. 246 da Lei 6.015, de 1973. Este dispositivo legal estaria a franquear o acesso de fatos não elencados expressa e taxativamente na lei (art. 167 da LRP ou legislação extravagante). O citado artigo 246 representaria hipótese legal de inscrição em numerus apertus[6].

Muito embora possamos admitir que a o art. 246 da Lei 6.015/1973 represente uma exceção à regra da taxatividade legal, mesmo assim essas averbações devem se referir, sempre, a vicissitudes que, por qualquer modo, possam alterar o registro.[7] Eis o texto legal:

Art. 246 – Além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbados na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro.

O tema não passou desapercebido na jurisprudência bandeirante. Perseguindo a averbação de um negócio jurídico de caráter obrigacional (comodato) e argumentando que o art. 246 poderia dar calce à pretensão averbatória, o interessado viu denegado o acesso do título na consideração de que o contrato de comodato, não tendo a virtude de alterar a situação jurídico-real da inscrição, quer em relação ao imóvel, quer à pessoa que nela figura, não mereceria, portanto, o acesso no fólio registral:

Insere-se o contrato de comodato no campo do Direito das Obrigações, e não autoriza sequer a averbação, eis que não há alteração subjetiva ou objetiva da situação do imóvel, nem gera título para nascimento, modificação ou extinção do direito real [8].

No tocante especificamente às averbações genéricas, com escopo preventivo, aqui impera, forte na jurisprudência, a regra da taxatividade legal, descabendo deferir-se inscrições cuja natureza não se encontre estereotipada expressamente em lei. Assim entendeu o C. Conselho Superior da Magistratura na → Ap. Civ. 11.420-0/2, São Paulo, em que foi relator o des. Onei Raphael. Destaco do r. parecer oferecido pelo hoje des. Aroldo Mendes Viotti o seguinte:

O legislador cuidou de elencar expressamente os atos registráveis tendentes – no dizer de Afrânio de Carvalho – a exercer ‘uma função de garantia do direito e prevenir terceiros do risco de fazer negócio com o imóvel sobre o qual recai o direito garantido’ (Registro de Imóveis, Forense, 1982, 3ª ed., pág. 176); assim, exemplificativamente, as ‘penhoras, arrestos sequestros de imóveis’ (Lei n. 6.015/73, art. 167, I, 5), as ‘citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis’ (art. 167, I, 21), bem como as ‘decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados’ (art. 167, II, 12).

A valoração acerca da conveniência de admitir título com efeito de publicidade acautelatória é tão somente do legislador, e estender essa faculdade ao intérprete ou ao aplicador configuraria risco de se deferir publicização equívoca [9].

Sobre o tema, calha trazer a lume as considerações que foram desenvolvidas na → Ap. Civ. 8.722-0/3, em que foi relator o eminente des. Milton Evaristo dos Santos. Peço vênia para uma longa citação:

Não parece demasiado cogitar das razões pelas quais, ao admitir a publicidade no registro de ações judiciais relativas a imóveis, o legislador a circunscreveu à inscrição da citação nelas realizada: quis, porventura, que, à conveniência de se trazer ao conhecimento de terceiros a existência de ações cujo resultado possa produzir reflexo no registro, se aliasse a segurança de que o permissivo não se prestasse a publicidade equívoca e geradora de incertezas, situação que se poderia, em tese, configurar se o mero ajuizamento de demanda, ainda que não seguido da integral formação da relação processual, pudesse se impor ao conhecimento público.

De outro lado, também não se amolda a hipótese ao disposto no artigo 167, II, n. 12, da L.R.P., a prever a averbação ‘das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados’. Claro está que a decisão averbável, a teor do mencionado artigo, não é aquela que tão só determina a averbação; necessário que, por seu conteúdo, a decisão, o recurso ou o respectivo efeito, possa ter repercussão em ato ou título registrado.

Nem é de se entender que a publicidade acerca da mera existência de ação judicial se insira dentre os atos ou ‘ocorrências’ susceptíveis de averbação ao amparo do artigo 246 da Lei n.º 6.015/73: a simples existência da ação judicial não tem o condão de gerar alteração do registro, mesmo em caráter subsidiário.

O título era, assim, desde logo irregistrável [10].

Como se vê, a orientação jurisprudencial em tudo se harmoniza com a doutrina, admitindo o acesso de títulos judiciais para a promoção de averbação acautelatória única e tão-somente nas hipóteses estritas da lei, devendo o intérprete (ou aplicador da lei) exercitar uma exegese limitativa ou estrita do conjunto normativo.

Obstáculos artificiais – pena de prisão – crime de desobediência

O R. mandado vem vazado em termos de gravosa ameaça de prisão. Depois de qualificar o exame técnico-jurídico feito por este Registrador de meros “obstáculos artificiais” e de ameaçar com as penas de crime de desobediência e de tomada de providências administrativas e cíveis, Sua Excelência fez o que poderia ter feito desde sempre, sem qualquer contraste ou contrariedade: sopesar e, eventualmente, superar a advertência deste Oficial, simplesmente reiterando a ordem. Ao final e ao cabo, tal ordem judicial seria acatada – não só pela força da jurisdição, mas porque representaria exercício dos poderes gerais de cautela do juízo.

A atuação do registrador, no exame de títulos judiciais, representa um poder-dever. O Oficial do Registro deve examinar os títulos que lhe são endereçados, examinando-os criteriosamente e os submetendo ao crivo da estrita legalidade. Deve realizar seu mister seja o título de extração pública, privada, administrativa ou mesmo judicial. A ameaça de prisão, dirigida a quem atua legitimamente na prestação de uma atividade de caráter jurídico e especializado (art. 3º da Lei 8.935/1994), no livre exercício de suas atribuições legais, com autonomia (in suo ordine) legalmente consagrada e com a garantia de independência jurídica (art. 28 da Lei 8.935, de 1994) é uma verdadeira ignomínia que já foi enfrentada e afastada pelo Supremo Tribunal Federal. Eis a ementa do decisum:

REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência -, pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado.

O min. Marco Aurélio, julgando a concessão de segurança em face de ameaças ilegais dessa natureza, registrou que seria difícil imaginar que se tivesse que bater às portas do Supremo Tribunal Federal para afastar constrangimentos como os retratados naquele processo. “Tudo se deve” – diz ele – “à visão distorcida quanto à organicidade do Direito, às atribuições dos órgãos públicos”. O caso se relacionava com denegação de registro de título oriundo da Justiça Laboral. E segue o voto do min. Marco Aurélio:

O paciente limitou-se a cumprir dever imposto por lei, pela Lei dos Registros Públicos. Examinando título emanado da jurisdição cível especializada do trabalho – carta de adjudicação -, percebeu que não se contaria, no instrumento, com informações e peças exigidas por lei. Como lhe cumpria fazer e diante, ao que tudo indica, de resistência da parte interessada, suscitou a dúvida e aí, mediante pronunciamento que veio a se fazer coberto pela preclusão maior, o Juízo da Vara dos Registros Públicos disse do acerto da recusa em proceder de imediato ao registro, consignando, inclusive, que a observância das exigências legais, após a dúvida levantada, não seria de molde a obstaculizar a decisão.

Assim, não é indispensável definir sobre a possibilidade de se ter, como agente do crime de desobediência, pessoa que implemente atos a partir de função pública, valendo notar, de qualquer maneira, que se procedeu não na condição de particular, não considerado o círculo simplesmente privado, mas por força de delegação do poder público, tal como previsto no artigo 236 da Constituição Federal. O que salta os olhos é a impropriedade da formalização do procedimento criminal, provocado que foi por visão distorcida do órgão da Justiça do Trabalho, como se o Direito não se submetesse à organicidade.

Concedo a ordem para fulminar, e essa é a expressão mais adequada ao caso, o procedimento instaurado contra o paciente e que se faz em curso no Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte (…) [11].

Amparado, pois, em precedente do Supremo, pode-se dizer que a ordem, aparelhada com a ameaça de prisão, decorrente da (equivocada) percepção de cometimento de crime de desobediência no cumprimento de ordem judicial, será manifestamente ilegal.

Reiteração de ordem judicial

A ocorrência de centenas de decisões do Eg. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo[12] cristalizaram disposição normativa que hoje figura nas Normas de Serviço da Eg. Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo. Trata-se do item 106, Cap. XX, das ditas Normas:

106. Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais.

Os inúmeros problemas relacionados com a devolução de títulos judiciais levaram a jurisprudência e a doutrina registrais a buscarem, na própria lei, fórmulas alternativas que pudessem conciliar os interesses relevantes representados pela atuação do registrador, na preservação dos direitos e prevenção de litígios, e do magistrado, na efetividade do processo.

Enfrentando problemas relacionados com óbices opostos pelo registrador, o C. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo acenaria com a possibilidade de superação dos óbices, nos casos em que houvesse inequívoca reiteração da ordem judicial [13].

Já em sede de doutrina, o des. Ricardo Dip, nas páginas da Revista de Direito Imobiliário, exploraria o tema com maior desenvoltura. Peço vênia a Vossa Excelência para citá-lo longamente pela inteira pertinência de suas (sempre) precisas e judiciosas considerações

Ora, indica o art. 204 da Lei nº 6.015/1973 que a decisão da dúvida não impede o uso do processo contencioso. Durante algum tempo, foi comum o uso de restringir a acepção do termo processo contencioso, referindo-o a ações, reportadas, p.ex., ao mandado de segurança, às demarcatórias, rescisórias, reivindicatórias.

O Superior Tribunal de Justiça teve mais larga visão a esse respeito, afirmando possível, no objeto de conceito do processo contencioso referido no art. 204 da Lei de Registros Públicos, incluir-se a decisão interlocutória relativa ao ato concreto de uma inscrição predial. A partir da compreensão do versado termo processo contencioso a abranger tanto sentenças quanto decisões interlocutórias, problematiza-se muito a vitalidade do procedimento administrativo da dúvida. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admitiu, a meu ver com razão, a supremacia da hipoteticamente mais pálida das decisões jurisdicionais sobre a mais brilhante e admirável das decisões de caráter administrativo. Patente o acerto da solução jurisprudencial do STJ, porque não se pode admitir a inversão administrativista consistente em que a decisão jurisdicional se supedite à orientação administrativa.

Averbo que, de a normativa vigente não impor o esgotamento prévio da via administrativa para a viabilidade das decisões jurisdicionais, as interlocutórias vigoram-se para as soluções registrarias, com independência de procedimentos administrativos, persistentes embora —já por outra perspectiva— as dificuldades de convivência registral das incidentais cautelares. O tema, contudo, solver-se-ia de maneira menos áspera com a reclamada instituição das inscrições provisórias.

Consideremos uma ilustração mais ou menos gráfica: suponha-se que um juiz, em processo contencioso, determina a inscrição de uma penhora; o registrador julga que não cabe essa inscrição porque, p.ex., há vício de continuidade, especialidade etc., e o título regressa às mãos do apresentante, que tem alguns caminhos a escolher: (a) harmoniza-se com o entendimento do registrador; (b) requerer a suscitação do procedimento de dúvida; (c) ajuíza um procedimento judicial de averbação, por sustentar que o ato em pauta é de averbamento; (d) ou, por fim, retorna ao Juízo da causa e pleiteia que ali se aprecie e decida sobre a recusa da inscrição: a decisão que aí houver é decisão em processo contencioso. Uma vez que haja seu trânsito em julgado, é decisão jurisdicional prevalecente sobre os ditames da justiça administrativo-registral.

A título exemplificativo, na esteira cônsona do que acima se indicou, peço que se medite sobre alguns julgados do STJ que apreciaram e decidiram recursos incidentais referentes: (a) à inscrição predial do protesto contra alienação de bens (REsp 695.095 –3a Turma –Ministra Nancy Andrighi; REsp 606.261 –3a Turma –Ministro Carlos Alberto Menezes Direito; REsp 440.837 –4a Turma –Ministro Barros Monteiro) ou em que, de maneira intercorrente, (b) o Juízo contencioso decidiu afastar dada recusa em inscrever uma penhora ou uma carta de arrematação ou de adjudicação (CC 31.866 –2ª Seção –Ministro Ruy Rosado de Aguiar; CC 30.820 –2ª Seção –Ministro Antônio de Pádua Ribeiro; RMS 193 –4a Turma –redator para o acórdão o Ministro Fontes de Alencar; CC 21.413 –2ª Seção –redator para o acórdão Ministro Barros Monteiro; CC 21.649 –2ª Seção –Ministro Eduardo Ribeiro; CC 40.924 –2ª Seção –Ministro Humberto Gomes de Barros).

Em síntese, a suscetibilidade dos títulos judiciais à qualificação registrária não importa em que possa uma decisão administrativa —assim, a proferida na dúvida registrária— sobrepor-se a uma decisão jurisdicional, contenciosa, seja final, seja interlocutória [14].

Neste caso concreto, ora posto à apreciação de Vossa Excelência, foi exatamente esse o procedimento adotado por esta Serventia.

Gostaria de finalizar esta manifestação citando o Prof. Antonio Scarance Fernandes. Em substancioso artigo, enfrentou cada um dos aspectos do tema que guarda íntima relação com este processo.

Na atividade de qualificação, o registrador deve realizar um juízo prudencial e técnico na análise de todos os documentos que lhe são apresentados, inclusive os judiciais. Age com autonomia, por força da imperatividade inerente à sua função, a qual, apesar de seu caráter privado, é, na sua essência, de interesse público. Trata-se de atividade personalíssima, intransferível e o registrador a executa sem depender da manifestação de outrem e sem realizar consulta a órgão judiciário.

Quando conclui pela inaptidão do documento para ingressar no caderno registral, deve atentar aos princípios que norteiam o seu juízo prudencial: da autonomia, da continuidade, da especialidade, da disponibilidade e da legalidade. Todos eles são informados pela razão principal de seu mister: a segurança dos registros imobiliários e, por consequência, a firmeza das relações jurídicas sobre direitos reais.

Não pode o registrador se eximir de efetivar qualificação negativa se, ao deparar com título ou ordem judicial, verificar a falta de requisitos extrínsecos e intrínsecos para a feitura do registro ou da anotação. Por outro lado, não pode, por necessidade de preservação da ordem jurídica, deixar de dar cumprimento às determinações do Poder Judiciário, quando extraídas de decisões proferidas em processos jurisdicionais.

A solução para essas duas exigências contrapostas pode, a grosso modo, derivar de três caminhos: a) o registrador emite um juízo de qualificação negativa e devolve o título ao interessado, ou, em caso de ordem judicial, comunica ao juiz as suas razões; b) o registrador submete a matéria à apreciação do juiz corregedor; c) o registrador cumpre simplesmente a determinação judicial.

As duas últimas vias (“b” e “c”) não podem ser aceitas. O registrador realiza juízo prudencial dotado de imperatividade e, no exercício pessoal e intransferível de sua atividade, não pode mais, na atualidade, por força de sua autonomia, deixar de decidir, efetuando consultas ao juiz corregedor. O simples e sistemático cumprimento da ordem não é possível, eis que deixaria o registrador de cumprir seu dever de ofício.

Restaria a primeira alternativa (letra a). Contudo, ela não resolve de forma definitiva o impasse. Pode o juiz, uma vez operada a devolução do título, entender que não há razão para a recusa do seu registro, caso em que poderá no exercício de seu poder jurisdicional reiterar a primeira determinação, ratificando-a em nova ordem.

Em caso de reiteração, não resta ao registrador outro caminho a não ser cumprir a determinação judicial. A decisão proferida em processo contencioso, após transitar em julgado, é imperativa e imutável, deve ser seguida pelas partes e aceita por terceiros como fato jurídico, sem prejuízo de que eventuais prejudicados possam defender seus direitos também por via judicial. Prevalece, até mesmo, sobre decisão proferida por juiz em processo administrativo.

Embora seja comum estar a ordem destinada ao registrador acompanhada de observação no sentido de que deverá ser imediatamente cumprida, sob pena de desobediência, nem se pode impor o cumprimento imediato da ordem, nem há prática de desobediência ou mesmo prevaricação.

Contra a determinação de cumprimento imediato, antepõe-se a previsão em lei prazo de 30 (trinta) dias para o cumprimento de pedido ou ordem para a realização de ato de registro ou averbação (artigo 188 da Lei de Registros Públicos).

Não há cometimento de desobediência por dois motivos essenciais: não pode o funcionário público, no exercício de suas atividades próprias, ser sujeito ativo deste crime, e falta dolo na conduta do registrador, pois não age ele movido pela vontade de desobedecer a ordem judicial, mas de cumprir o seu dever de realizar qualificação.

Também não há prática de prevaricação. Faltaria nas condutas omissivas de ‘retardar ou deixar de praticar ato de ofício’ o elemento do tipo “indevidamente”, uma vez que o registrador age em conformidade com a lei na proteção de direito de outros e na preservação da segurança dos registros. Por outro lado, não se configuraria o crime na conduta comissiva de ‘praticar ato de ofício contra expressa disposição de lei’, porque, como antes expendido, o registrador, em caso de reiteração da ordem judicial, não tem outra conduta possível a não ser cumprir o que lhe foi determinado. Enquadra-se essa situação, perfeitamente, como hipótese de inexigibilidade de conduta diversa.

Por fim, faltaria, sempre, nas condutas omissivas ou comissivas, outro elemento essencial da prevaricação – satisfação de interesse ou sentimento pessoal –, pois o oficial do registro imobiliário, ao realizar uma qualificação negativa de documento ou ordem judicial, não age senão por força de seu ofício, e não para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Não pode o registrador ser preso em flagrante quando recebe para cumprimento ordem judicial.

Inexiste situação de flagrância, em relação à desobediência ou prevaricação, enquanto não decorre o prazo para o cumprimento da ordem judicial. Por outro lado, ultimado o prazo, o crime já se consumaria, não se podendo mais efetuar prisão em flagrante por ausência do requisito da atualidade, pois só aparentemente os crimes de desobediência e prevaricação, em sua modalidade omissiva, são de natureza permanente. Como acentuaram o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, decorrido o prazo, o crime se consuma instantaneamente.

Não seria cabível a prisão, ainda, por duas outras razões. A prisão em flagrante se executa, não é determinada por mandado. Não pode o juiz, por mandado, impor à autoridade policial que prenda em flagrante, pois cabe a ela, verificar em cada caso, se tal ato é possível. A autoridade judiciária civil ou trabalhista somente pode determinar prisão nas hipóteses de depositário infiel e devedor de alimentos. Ainda, a desobediência e a prevaricação são infrações de menor potencial ofensivo e, quando ocorrem, nos termos da Lei n. 9.099/95 (artigo 69, parágrafo único), não permitem prisão em flagrante do autor do fato, mas somente a elaboração de termo circunstanciado.

Pode o oficial, ou mesmo uma associação de registradores, impetrar habeas corpus, seja para superar constrangimento já ocorrido ou para evitar que ele se concretize. Em caso de risco de prisão, em virtude de fatos anteriores, podem pleitear salvo conduto por meio de habeas corpus preventivo [15].

Conclusões

O acesso do título, como determinado por Sua Excelência o Senhor Juiz da 26ª vara Cível da Capital, salvo melhor juízo, não merecia ingresso por carecer de base e fundamento legais. Reiterada que foi a ordem judicial, consoante a melhor doutrina, o ato de averbação foi praticado e permanece dita inscrição sem qualquer intercorrência até a data de hoje.

Como o R. mandado de intimação traz a advertência de que este Registrador estaria a criar “obstáculos artificiais” à prestação jurisdicional e que a sua atuação profissional poderia acarretar responsabilidade penal, civil e administrativa, represento o caso a Vossa Excelência para que possa tomar as providências que julgar oportunas e necessárias.

Era o que nos competia informar – o que fazemos com o devido respeito e acatamento.

São Paulo, julho de 2013.

SÉRGIO JACOMINO, Oficial Registrador.


[1] As decisões citadas neste pedido poderão ser consultadas aqui: http://wp.me/pcDhK-xE

[2] As hipóteses de inscrições preventivas hão de ser interpretadas estritamente. MIRANDA. Pontes de. Tratado. T. XI, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, § 1.255, p. 380.

[3] LEITE. Murillo Renault. Registro de Imóveis – comentários ao seu regulamento. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, p. 195.

[4] SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. IV vol. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Vastos, 1957, p. 469.

[5] PONTES. Valmir. Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 51, n. 77.

[6] Na jurisprudência bandeirante, brevitatis causa: → Ap. Civ. 441-0, São Paulo, j. 14.9.1981, DJ 9.10.1981, rel. des. Bruno Affonso de André; → Ap. Civ. 607-6/2, Piracicaba, j. 22.2.2007, DJ 4.4.2007, rel. des. Gilberto Passos de Freitas; → Ap. Civ. 0035067.98.2010.8.26.0576, São José do Rio Preto, j. 11.8.2011, DJ 10.10.2011, rel. des. Maurício Vidigal.

[7] As averbações admitidas com base no permissivo legal são em numerus apertus, embora, como já assinalado, devam sempre referir-se a circunstâncias que possam representar uma inovação ou alteração na situação jurídica inscrita, ou “esclarecedoras da situação do registro”. AZEVEDO. José Mário Junqueira de. Do Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 118;

[8]Ap. Civ. 10.608-0/3, Araras, j. 2.7.1990, DJ 17.8.1990, rel. des. Onei Raphael.

[9]Ap. Civ.  11.420-0/2, São Paulo, j. 2.7.1990, DJ 1.8.1990, rel. des. Onei Raphael.

[10]Ap. Civ. 8.722-0/3, j. 7.11.1988, DJ 6.12.1988, rel. des. Milton Evaristo dos Santos.

[11]HC 85911-MG, j. 25/10/2005, Primeira Turma (unânime) DJ 2/12/2005 (p. 13), rel. Min. Marco Aurélio. RT v. 95, n. 847, 2006, p. 495-496.

[12] Brevitatis causa: → Ap. Civ. 87-0, São Bernardo do Campo, j. 29.12.1980, DOE de 22.1.1981, rel. Adriano Marrey→ Ap. Civ. 993-0, Iguape, j. 11.5.1982, DO de 1.6.1982, rel. Bruno Affonso de André.  → Ap. Civ. 22.417-0/4, Piracaia, j. 31.8.1995, DOE 31.5.1996, rel. Antônio Carlos Alves Braga; → Ap. Civ. 681-6/9, Jundiaí, j. 26.4.2007, DJE de 29.6.2007, rel. Gilberto Passos de Freitas. → Ap. Civ. 801-6/8, Suzano, j. 14/12/2007, DOE de 18.2.2008, rel. Gilberto Passos de Freitas.  → Ap. Civ. 0034631-29.2010.8.26.0451, Piracicaba, j. 27.10.2011, DJE de 13.1.2012, rel. Maurício Vidigal.

[13] No caso tratado no aresto, o registro foi denegado não somente porque a qualificação originária do Registrador era legítima; fosse assim, contudo, mas o título viesse aparelhado com a determinação de cunho jurisdicional no sentido de afastar o óbice, e o registro então se faria. → Ap. Civ. 321-6/7, São Pedro, j. 14.4.2005, DJ 25.5.2005, rel. des. José Mário Antonio Cardinale.

[14] DIP. Ricardo. Dúvidas sobre o futuro da dúvida. RDI 64, jan./jun. 2008, p. 254-5.

[15] FERNANDES. Antônio Scarance. O cumprimento de ordem judicial pelo registrador – aspectos penais e processuais. In Doutrinas Essenciais de Direito Registral. DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio, org. Vol. I, São Paulo: RT, p. 1.043, n. 61.

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